.:: o fantástico destino de lady mi - parte 3 ::.

"Posso escolher entre ser constantemente ativa e feliz ou introspectivamente passiva e triste. Ou posso ficar louca, ricocheteando no meio" Sylvia Plath

terça-feira, março 14, 2006

Farsa

Entre todos os habitantes alfabetizados do planeta Terra, há um que é o menos indicado para escrever esta coluna às leitoras da revista. Sou eu. Entre todas as pessoas (do planeta), há uma que é a última com quem alguém saudável deveria conviver. Sou eu. Entre todos, há um indivíduo cujos pensamentos são os mais impróprios e fora de lugar. Eu. Entre nós, há um cujo apreço à melancolia, a hábitos reprováveis e a dentes malcuidados que chamam a atenção. Entre vocês, ninguém tão infame. Entre eles, um oceano de superioridade.
Entre eles, alguém paciente, organizado, diletante nas tarefas domésticas, voluntarioso para subir em escadas e furar paredes. Entre eles, um espírito prático e criativo, proativo, pré-lavado e aprovado. Entre eles, um homem verdadeiramente puro e bom, de sorriso aberto, um poeta (sem metafísica) honrado e merecedor. Um homem de valores (e braços) fortes. Um homem com crédito (e nome) na praça. Um homem fértil (e viril). Um homem de ação, de bem, de confiança, da lei, de Deus, de empresa, de espírito, de Estado, de esportes, de família, de letras, de negócios, da medicina, de palavra, de pulso, de sociedade, do mundo. Entre todos eles, não eu. A distância física e imaterial entre eles (o próximo, o último, todos) e mim (eu, que não sou eles) cresce cada vez mais. Nossas diferenças aumentam e a separação entre nós ruma à irreversibilidade total, ao ponto de não-retorno – quando eu jamais poderei sequer cogitar a hipótese de sê-los.
Numa certa manhã (não tardará) vou acordar com o pensamento estampado em todos os meus olhares: eu jamais os serei. E vou me sentir como se estivesse me libertando de um julgo implacável. E em júbilo vou rir e pular e rabiscar com as unhas pelas paredes do mundo: sou mau. Sou desprezível e nada do que tive mereço. E vou escrever, às golfadas: não tenho alma, meu deus é o tempo. E no meu tempo (no tempo do meu deus) não há amanhã e não há ontem. Não tenho culpa, não tenho família e não tenho amor. Só tenho o vazio e um fiapo de mim mesmo. E vou abraçar o vazio com força, e vou me costurar pelas noites. E vou correr pelo mundo com lágrimas de desespero escorrendo pelo corpo. Como uma pele que se liquefaz.
Até que alguém entre nós (eu que não sou eles, vocês que não me são) descubra meu grande segredo (sou infame, imprestável, jamais os serei etc.), continuarei enganando todos (não só as leitoras) como: um agente russo infiltrado (barbas ruivas postiças), ou um palhaço que é triste (cerveja com Steinhaeger), ou um padre apaixonado pela viúva (rezando a missa de sétimo dia), enfim, como alguém que não é o que deveria ser, como alguém que não é, em absoluto. Até que descubram (alguém entre nós), o vinho será doce e gelado (entre nós), e o mundo abrirá suas portas aos nossos pés, e os cachorros abrirão sorrisos e nos estenderão orquídeas amarelas, e a nossa sinfonia não vai parar de rolar, sinos ressoando por dentro do meu ouvido esquerdo, dando voltas no labirinto das minhas lembranças, nossas esquinas, seus seios em concha nas minhas mãos, estrelas caindo do céu nos seus ombros, constelações derramadas na sua pele, confetes arremessados por anjos aflitos numa confeitaria antiga onde senhores de terno de risca assistem calados ao nosso último e desajeitado tango em Buenos Aires – a ubiqüidade do seu rosto e a eternidade de nós dois.

João Paulo Cuenca